Por um cinema pedreiro

Last Updated on: 1st setembro 2023, 11:32 am

Publicado originalmente na Revista Zagaia em 27/08/2014

Em sua esmagadora maioria, o cinema brasileiro é feito de engenheiros e arquitetos. Eles sabem, com distância, de tudo. Sabem pela mente, intelecto… e só. Claro que devem haver engenheiros e arquitetos com uma formação humana, que sabem ir além, mas ainda pertencem a uma classe e podem ou não serem traidores dela.

Falta ao cinema brasileiro um cinema pedreiro. Daqueles que na quebrada ajuda a levantar a casa do vizinho e a sua própria. Daquele que sabe ser peça, sabe ser tijolo, consciente de tudo o que circunda essa função. Cinema que saiba ser função1. O pedreiro sabe como levantar uma casa, seu aprendizado vem do corpo inteiro, o que quer dizer que é da mente também, do intelecto. O pedreiro sabe em todos seus poros ser arquiteto e engenheiro, não como condição de uma classe opressora, mas como uma necessidade bruta de levantar um espaço, um lugar, uma coisa.

Um cinema pedreiro significa revoltar-se de corpo inteiro contra uma opressão clara, opressão estética-política, opressão ideológica. 

Um cinema pedreiro virá de uma formação pública em cinema de risco, ou das ruas, não das escolas de cinema e seus esquemas, que formam robôs cineastros para ganhar editais ou trabalhar dirigindo publicidade e vídeo institucional (além de suas vertentes que passam nas telas grandes). Essas escolas continuam com a conivência e apoio de artistas-professores-frustados, escolas públicas e privadas, formam cineastros e vítimas, que definham nas mãos de produtoras exploradoras e são máquinas de sugar dinheiro e cérebro.

É de um cinema pedreiro que surgirá alguma revolução na linguagem, no mundo.

“Trabalhais para a humanidade. A classe operária tornou-se hoje o único representante da grande, da santa causa da humanidade” Mikhail Bakunin em Três Conferências feitas aos operários do vale de Saint-Imier, maio 1871.

  1. “Meu beck, a caixa e o bumbo e o clap
    Cresci ali envolvidão qua função
    Na sola do pé bate o meu coração
    Esse som é do bom, dá uns dois e viaja
    Nós somos negros não importa o que haja
    O ritmo é nosso trazido de lá
    Das ruas de terra sem luzes e pá
    O fascínio não morre ele só começô
    Das festa de preto que os boy não colô
    Sô o que sô vivo aquilo que falo
    Meu rap é do gueto e não é pros embalo
    Vagabundo, se for pra somar chega aí”
    Dexter em “Sou Função”, do disco Exilado Sim, Preso Não ↩︎

Autor

  • Lincoln Péricles

    Lincoln Péricles, vulgo LKT, nasceu e mora no bairro do Capão Redondo, quebrada na zona sul de São Paulo. É diretor, roteirista, montador e educador popular, somando mais de quinze anos trabalhando com filmes independentes produzidos em sua quebrada, que circularam entre cineclubes e coletivos periféricos, banquinhas de camelô, becos e vielas, e eventualmente em festivais nacionais e internacionais. Trabalha com preservação de materiais audiovisual produzidos nas quebradas do Brasil. Em fevereiro de 2020 teve seu trabalho destacado pela Cahiers du Cinéma, considerada a maior publicação de cinema do mundo, que descreve sua obra como “Um cinema longe do imaginário ligado às favelas, que inventa sua própria forma, áspera e necessariamente imperfeita, entre intervenção e arquivo visual do bairro”. Participa junto a diversos movimentos sociais de processos de formação em cinema e lutas por justiça. Filho de migrantes das matas dos interiores Minas Gerais e do Paraná. Faz parte dos coletivos Basquete e Autonomia, Rango de Classe e ZICAA (Zona integrada de cinema e autonomia audiovisual).

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