Time is out of joint

Realizado entre o primeiro e o segundo turno das eleições de 2022, Deuses da Peste, dirigido por Gabriela Luíza e Tiago Mata Machado, reúne uma trupe de atores e atrizes em um antigo casarão de São Paulo para uma encenação de fantasmas do nosso tempo histórico – ou uma pequena cerimônia de exorcismo. Dividido em três atos – “A tempestade”, “A peste branca” e “O capital” –, o filme é um tour de force que achata Shakespeare e Artaud, Césaire e Genet, Gene Kelly e Agamben, Sade e Silvia Federici. Entre a teatralização da política e a politização do teatro, surge um filme raro, monstruoso, excessivo, insuportável e sublime. 

Deuses da Peste é, sobretudo, um filme de teatro, ou de uma comunidade de teatro em cujo centro está Paulo Goya, antigo ator shakespeariano da comédie-française. Paulo interpreta Próspero, personagem de A Tempestade, mas encena também a imagem alegórica de um patriarcado soberano e decadente. O centro da encenação – o corpo frágil do ator – é o epicentro da peste a que se refere o título, a qual surge no filme como metáfora para o avanço da extrema direita no Brasil. O “teatro da peste” extrapola, contudo, o tempo presente – e um dos pontos nodais do filme consiste em empreender uma genealogia crítica da noção de “peste” ao longo de uma breve história do capitalismo patriarco-colonial. 

A noção de comunidade é uma das muitas portas de entrada possíveis para esse filme múltiplo e rizomático. Se a política é um teatro e todo teatro é uma forma de estar junto, seria possível ler o bolsonarismo como um desejo vivo e pulsante de comunidade. As bandeiras e as camisas verde e amarelas aparecem não apenas como os figurinos de uma facção teatral que habita o palco da política (ao que o filme parece perguntar: e quais seriam as forças que agem na coxia?), mas como os signos que, depois de reapropriados pelos atores do filme, inauguram uma encenação da encenação – uma dobra – pela qual se forja uma comunidade inesperada, áspera e indigesta, entre esses atores e os bolsonaristas que eles pretendem mimetizar. Comunidade que, embora aponte para uma não reconciliação, procede por pequenos curtos-circuitos que embaralham os códigos da alteridade. 

Onde termina o ator e onde começa o personagem?, pergunta-se Paulo Goya. Essa questão central tensiona, de princípio, toda sorte de maniqueísmo que o filme poderia sugerir. Os atores e atrizes de Deuses da Peste são como os simbiontes políticos que Paul B. Preciado define, em Dysphoria Mundi, como “mutantes relacionais”. Em seu jogo permanente de permutações, alterizações e agenciamentos (pensemos no longo plano em que esses intérpretes formam uma fila diante da câmera e vão intercambiando seus figurinos), eles deslocam e implodem ficções estanques de identidade. Se a relação simbiótica é “uma associação na qual um organismo se relaciona com outro ou outros organismos para sobreviver”, como escreve Preciado, os atores encenam continuamente a necessidade de estarem juntos para resistir ao avanço do fascismo. Mas o que eles não esquecem – e esta é a grande força política do filme – é que é preciso convidar os fantasmas do bolsonarismo para a mesa. É preciso “se contaminar com a peste”, como disse o ator Renan Rovida no debate sobre o filme. 

Deuses da Peste é um filme fraturado, inconstante, composto. Tudo nele está “out of joint”, como dizia Hamlet sobre o tempo. Seu tecido fílmico parece sempre fora dos eixos, rasgado, desarticulado, desordenado, desregrado, desconjuntado. Mas o intervalo entre o primeiro e o segundo turno das eleições de 2022 não representou justamente esse “agora desencaixado que sempre corre o risco de nada manter junto” (Derrida)? Como inventar um espaço de liberdade nesse tempo “out of joint”? O som do mundo desmoronando já nos chega aos ouvidos. Como reinventar o tempo presente nas ruínas de um capitalismo petrosexorracial e na iminência de um colapso planetário? Podemos começar por Shakespeare. Por Artaud. Pelo teatro.

Autor

  • Doutorando em Comunicação Social no PPGCOM-UFMG. Edita a Revista Madonna e colabora com a LIMITE – Revista de Ensaios e Crítica de Arte. Também atua como tradutor para o Vestido sem costura – blog de cinema.

    Ver todos os posts