Um minuto é uma eternidade para quem está sofrendo, de Fábio Rogério e Wesley Pereira de Castro, parece se construir no ponto dialético onde duas tendências se encontram e se retroalimentam: o voyeurismo do primeiro e o exibicionismo do segundo. Os últimos trabalhos de Fábio, centrados na sua relação com Jean-Claude Bernardet, já nos permitiam descobrir seu desejo de se imiscuir nas imagens do Outro e de se camuflar com suas cores. Desta vez, ele convida Wesley a gravar trechos de seu cotidiano de isolamento social, durante a pandemia do novo coronavírus. A faísca gerada por esse encontro é o carburador de um filme que negocia constantemente a discrição de um e a indiscrição do outro.
Wesley entra com as imagens, Fábio com a montagem. Um filma a si mesmo de corpo e alma, fazendo da câmera uma confidente, enquanto o outro seleciona, recorta e dispõe em certa ordem esse material. Em outras palavras, ao mesmo tempo que a câmera percorre o espaço da casa como se quisesse capturá-la em todos os seus detalhes, a montagem escolhe a permanência e a duração dessas imagens. É neste sentido que seria possível falar em negociação dos gestos de (se) exibir e (se) esconder por parte de cada cineasta, como se a tendência hiperbólica das imagens fosse tensionada pela inclinação eufemística da forma escolhida para organizá-las. Essa impressão esconde, contudo, uma negociação mais complexa e menos binária.
No debate com Fábio e Wesley no dia seguinte à exibição do filme, aventou-se que as imagens gravadas são muito mais elípticas do que sugerem à primeira vista. Uma certa maneira de filmar as portas ou as janelas, por exemplo, traduz um registro, sem qualquer tipo de paradoxo, no qual mostrar também é esconder. Por outro lado, poderíamos dizer que a montagem, menos invisível do que aparenta (pensemos nos vários raccords operados entre as imagens), manifesta uma vocação retórica para afirmar em vez de sugerir. No mesmo sentido, os realizadores explicaram que Fábio pedia que as imagens durassem (tendência hiperbólica?) enquanto Wesley tinha o costume de gravar vídeos muito curtos (tendência eufemística?).
Nas palavras de Wesley, o filme nasce como uma “carta de suicídio”. Durante o primeiro ano de gravações, imagens de automutilação e alusão a práticas de autodestruição eram recorrentes. Fábio chegou a dizer que houve dias em que, ao receber as imagens de Wesley, lhe passou pela cabeça que aquelas seriam as últimas. Passado esse período inicial de gestação do filme, o ator-autor adquiriu “consciência de seu personagem” e passou a hipertrofiar, modular, planificar sua autoencenação. É então que o projeto desliza lentamente da carta de suicídio à “auto-ajuda positiva” que faz o personagem gozar da própria imagem. Negociando com a própria dor, ele traz à cena o humor, o deboche e o tesão. A montagem de Fábio, acompanhando essas oscilações, transforma o filme em uma peça orgânica que faz intercalar ou dialogar episódios de mania e depressão, euforia e melancolia, libido e languidez.
Fábio disse que seu interesse em personagens como Wesley ou Jean-Claude se situa além do cinema, como se seus filmes quisessem descobri-los naquilo que escapa à cinefilia de cada um. Mas o próprio filme e seu protagonista complexificam as intenções do diretor quando tornam inconcebível a hipótese de uma separação entre Wesley e o cinema que ele vive cotidianamente – como crítico, espectador ou, neste caso, como cineasta. “O cinema me penetra desde cedo”, disse o ator no debate (o cu piscando em dado momento: porta de acesso dessas imagens?), que completou afirmando que sua vida pessoal é uma repetição do que ele vê nos filmes. Wesley, que certamente leu Serge Daney, é consciente de que o cinema nos olha tanto quando nós olhamos para ele, e que a cena que mostra seus DVD’s preferidos é tanto um atestado de gosto eclético quanto uma autobiografia.
Também foi proposto, no debate, que a câmera de Um minuto é uma eternidade para quem está sofrendo é uma espécie de prótese. E mais do que uma prótese, talvez fosse interessante pensá-la como um membro ou mesmo um segundo pênis (lembremos da cena em que Wesley se refere ao próprio pau como um “material de vida”). Câmera por vezes lasciva mas por vezes apática, libidinosa mas também abatida; câmera que é segurada pelas mãos, balançada e manipulada. Se a cena em que o personagem se masturba, goza e engole a própria porra é em alguma medida central, é porque ela aponta para uma economia de fluidos que organiza todo o filme: a recorrência da água, da chuva, do mijo e das lágrimas parece indicar que há um sistema de matérias fluentes que circula entre os diferentes fragmentos registrados por essa câmera-pênis. Os fluidos aparecem como as veias sanguíneas ou os canais de um corpo-filme.
Em meados do filme há uma cena especialmente emocionante. Wesley, que tem o hábito de registrar seus pensamentos diários em uma agenda, quase sempre desenha um rosto triste abaixo do texto. Num dia escreve: “por que penso tanto em matar?”. Desta vez ele não precisa, entretanto, rabiscar o rosto triste, pois o desenho do dia anterior deixou sua marca na página em branco. Poucas imagens traduzem com tanta melancolia a depressão do personagem-autor, perene mas metamorfoseada, sobrevivendo como um rastro de tinta que se espalhou entre os dias. Viver é negociar com essa permanência.