Last Updated on: 12th janeiro 2024, 06:07 pm
Sons de guitarra e bateria ecoam no quadro ainda escuro. Primeira imagem: luzes globulares presas a um teto e destacadas na escuridão, estrelas no breu da noite ou naves estelares pendentes de um céu noturno, e um palco ocupado por uma figura de relevos turvos, atingida pela luz em seu dorso nu mas em comunhão com as sombras pelo seu vestido preto. Um fantasma cuja silhueta, apesar de indeterminada pela escuridão difusa que consome tudo, tem sua posição destacada pelo contra-plongée da câmera. À sua direita, um homem na bateria; à esquerda, um guitarrista. Levando nas mãos um microfone, dirigindo-se a uma plateia fora de campo, a figura começa a entoar uma canção de amor; “Torture” é seu nome e Jeanne Balibar sua intérprete: atriz e cantora, cantora e atriz, autora dos álbuns Paramour (2003) e Slalom Dance (2006).
Como todos os filmes de Pedro Costa, Ne Change Rien (2009) nasce de um encontro. Balibar e o cineasta teriam se conhecido por intermédio de Philippe Morel, diretor de som deste e de outros trabalhos do realizador (Morel viria a falecer durante o processo de produção do filme, que por sua vez lhe é dedicado). Cinema e música, música e cinema, os uniram. “Amamos os mesmos filmes e não amamos os mesmos filmes. Haverá algumas exceções, mas penso que temos uma sensibilidade, enquanto espectadores de cinema, extremamente próxima”, relembra Balibar sobre a amizade iniciada com Costa em 2004 durante o FIDMarseille (Festival Internacional de Cinema de Marseille). Em 2005, o cineasta foi convidado pela cantora-atriz para dirigir um vídeo para uma das canções de Paramour. A parceria, que deu origem a um curta-metragem, se estendeu por três anos; e desse cotidiano de ensaios, concertos e performances é construído, enfim, Ne Change Rien: filme de música que é também de cinema, filme cinéfilo que é também audiófilo.
A relação constitutiva entre cinema e música é talhada lentamente por dentro, em compassos. Quando performa a música-tema do filme, Balibar parece ter saído de um retrato de Lee Garmes, fotógrafo de Marlene Dietrich nos anos 1930. Uma mesma textura de mistério, uma mesma clareza difusa, uma mesma atmosfera feérica caracterizam a visão tangencial de Balibar. Filmado em primeiro plano, seu rosto impreciso dialoga com a luz tênue enquanto parece preferir a obscuridade; é um fantasma que, não importando a proximidade da câmera, parece sempre em fuga da visibilidade absoluta. Na canção, a voz de Jean-Luc Godard é sampleada e utilizada como base. Seu refrão ecoante – “Ne change rien, pour que tout soit différent1” –, advindo das História(s) do cinema (1988), já era uma referência a um aforismo de Bresson: “Sem mudar nada, que tudo seja diferente”.
As relações entre cinema e música extrapolam o momento de interpretação de “Ne change rien”. “Torture”, que abre o filme, foi originalmente composta por Kris Jensen e utilizada em Scorpio Rising (1964), de Kenneth Anger. “Johnny Guitar”, por sua vez, constitui uma regravação da música de Peggy Lee para o filme homônimo de Nicholas Ray, de 1955. Nos créditos finais, Balibar interpreta “Weeping Willows”, composta por Chaplin para seu filme Um Rei em Nova York (1957). Ne Change Rien se permite, enfim, ouvir e se apropriar do eco distante das melodias que o cinema certo dia nos fez ouvir, e que nos chega hoje transfigurado pelo trabalho singular de uma cantora que também é atriz. Além disso, uma das canções de Slalom Dance, presente no filme, refere-se ao gesto de se mutilar ou se cortar para “chamar a atenção”. A suspeita de se tratar de uma metáfora para o trabalho de montagem poderia soar absurda se a canção não fosse intitulada, justamente, “Cinéma”.
Em diferentes momentos do filme, o eu-lírico das canções e as imagens travam relações inusuais. A performance de “Torture”, no início do filme, contrasta o monumento filmado no contra-plongée, situado acima da altura da câmera, e a vulnerabilidade da letra que é interpretada (“Baby, you’re torturing me”2). Durante o ensaio de “Cinéma”, um sorriso de Balibar, captado pela câmera sempre atenta e disponível do cineasta, traz uma camada outra aos versos dolorosos e violentos da canção. Se “Ton diable”, enfim, dá continuidade à lógica de canções sobre amores infames, cruéis e torturantes, versando sobre uma relação obsessiva, a encenação de seu ensaio nos mostra sua contraparte singela, dada pela relação de cumplicidade entre Balibar e o guitarrista Rodolphe Burger. Na cena imediatamente seguinte, os músicos caminham pelo espaço do estúdio ouvindo a gravação da música. Enquanto o eu-lírico da canção, este “duplo ridículo”, persegue obsessivamente seu amor, os artistas movem-se de um lado para outro na imagem captada em plano fixo; eles conduzem-se e, como se atraídos por um centro sempre errante, dão a impressão de se perseguirem mutuamente.
Nas sequências de ensaio e performance da opereta “Le Périchole”, onde Balibar atuava durante o período de colaboração com Costa, as correspondências entre música e imagem são igualmente multifacetadas. A peça, adaptada por Julie Brochen da obra escrita em 1868 por Jacques Offenbach, tematiza o romance entre Périchole e Piquilo. Quatro são os momentos, no filme, em que travamos contato – direto ou indireto – com a opereta. Em um deles, um ensaio de canto lírico, Balibar é vista enclausurada em um primeiro plano de câmera fixa, com sombras delineando seu pescoço e acentuando seu esforço de laringe. Cansada, impaciente, constantemente interrompida pela professora e aprisionada no plano-sequência, Balibar suspira e pragueja. A peça musical que ela entoa, “Complainte de los amantes – Ecoutez peupl’ d’Amérique”, faz parte do terceiro ato de “La Périchole”. Trata-se do momento em que a personagem principal da opereta canta, em praça pública, sobre “a história de dois amantes infelizes que viveram felizes para sempre”. Se os versos de amor, cristalizados após o perdão real da personagem do vice-rei Don Andrés de Ribeira, constituem um momento narrativo de emancipação, nada na imagem do ensaio sugere liberdade.
Não vendo qualquer necessidade de reivindicar, aqui, conceitos problemáticos como “contraponto” e “dissonância”, me parece que as sequências citadas operam dentro de uma economia que poderíamos chamar de ressonante. Música e imagem não exatamente se contrastam, tampouco se contradizem, mas ecoam uma na outra como frequências sensíveis ao toque (seja em seu sentido táctil, seja em seu sentido sonoro). O eco é uma figura de linguagem de Ne Change Rien: as músicas ecoam o cinema, o cinema faz ecoar as canções, o eu-lírico ecoa nos planos, as composições da imagem ecoam nas notas musicais.
É interessante considerar ainda outro tipo de ressonância, instituída pela forma como certas sequências desaguam em outras, ou como certas canções reverberam nas imagens que a antecedem ou a seguem. Quando performa “These Days”, cuja letra abriga temas como a dor, a tortura e a depressão, Balibar é a protagonista absoluta no plano: sendo a única iluminada pelas luzes do palco, focada em uma imagem consumida pelo desfoque, sua figura é detentora de uma força que falta ao eu-lírico fragilizado. A próxima sequência, no entanto, mostra a cantora em seu camarim, sentada e cabisbaixa, com o olhar compenetrado sobre a mesa. A música continua tocando, invadindo o espaço dos bastidores. Perseguindo Balibar como um espectro, assombrando-a mesmo nos momentos de pausa, a canção contamina o tom da cena: a performance vivaz da cena anterior dá lugar a uma introspecção mais conformada à melancolia da música que vimos anteriormente performada.
Encontramos movimento semelhante na última cena envolvendo a opereta. Enquanto o plano dá a ver o pianista Vincent Leterme, a voz de Balibar, fora de quadro, golpeia a imagem. Ela canta o que supomos ser a música de despedida de Périchole e Piquilo. Um corte nos leva, novamente, ao camarim de Balibar. O momento da separação, na peça, parece ressoar na cena: abatida, apática e solitária, a cantora pouco reage ao seu entorno. A maneira como encara o guitarrista, Burger, quando este entra em quadro e lhe pergunta quase rispidamente sobre o momento de começar a cantar expressa uma espécie de raccord emocional entre os eventos dramáticos da opereta e o cotidiano de trabalho. Por meio de uma contaminação, de um eco que reverbera entre uma cena e outra, Balibar se torna Périchole.
A cena progride e, no entanto, uma lenta metamorfose acontece. Neste momento do filme, Balibar e Burger performam “Rose”, canção que faz referência a um poema de Gertrud Stein chamado “Sacred Emily”, escrito em 1913. O eu-lírico feminino da música faz do amor e da música uma mesma droga – o amor percorrendo as águas da música. A base melódica de Burger parece começar a atender os desejos amorosos do eu-lírico encarnado na voz de Balibar. Ambos partilham o quadro enquanto o baixista, figura menos importante, se encontra nas margens da imagem. A voz de Balibar ecoa e reflete nos acordes de guitarra, que ecoam e refletem no canto. Conforme a música é interpretada, a postura da cantora se transforma. Um sorriso volta a lhe cobrir os lábios, seu espírito parece receber a visita inesperada do entusiasmo, os olhares trocados com Burger sugerem tranquilidade: Périchole reencontra seu Piquilo.
A sequência é esclarecedora: ela põe a nu o fato de que Ne Change Rien é também uma história de amor entre as personagens Balibar e Burger. Essa ficção clandestina, contrabandeada no interior de um documentário musical, alcança seu paroxismo em dois momentos do filme. No primeiro deles, já citado, os músicos escutam a gravação de “Ton Diable” no estúdio. Percorrendo o quadro de um lado para outro, fumando e conversando, eles tecem comentários e sugestões para a canção. Balibar comenta que seria mais bonito se sua voz se envolvesse com a de Burger: “não ligar tanto ao ritmo, e ir apenas atrás de ti”. Nesse momento, uma melodia terna, suave e delicada acaricia a imagem. Ela não dura nem dez segundos e o diálogo transcorre como se nada houvesse acontecido. Não sabemos se o que ouvimos é um som incluso na pós-produção ou um som captado em direto no momento da gravação.
Há um texto em que Jean-Louis Comolli 3se questiona como filmar a música enquanto ela é feita. O autor argumenta que, em um filme, talvez encontremos “mais música no rosto daquele que escuta do que naquele que toca”. A cena em que os músicos se deslocam no espaço ouvindo a gravação de “Ton Diable” nos repõe o problema da dimensão visível da música. Comolli identifica uma tendência geral do cinema em registrar o corpo atuante do músico e deter-se no retrato quase obsceno de seu rosto, seus gestos e sua silhueta. “Como se, diante da invisibilidade essencial da música, o cinema a recolocasse (na realidade, de forma vulgar) no âmbito do visível”, diz o autor. A esta tendência Comolli opõe a opção de filmar a audição, bem como “aquilo que ocorre entre os músicos que tocam juntos”. Tal como nos aparece, fugaz e misterioso, o pequeno excerto musical da cena entre Balibar e Burger, cujo estatuto não é facilmente determinável, nos faz especular se não se trata de um eco do amor dos músicos, isto é, a repercussão sonora de um romance subterrâneo, a faísca de uma relação amorosa que desaparece tão logo vem à tona.
A outra sequência central, nesse caso, é a performance de “Johnny Guitar”. Ora, a personagem principal do filme de Nicholas Ray não era Johnny Guitar, pistoleiro e violonista interpretado por Sterling Hayden, mas Vienna (Joan Crawford), dona de um saloon no Arizona ameaçado pelos habitantes da região. Para se proteger, a protagonista recorre a Johnny, seu antigo amante; porém, embora este dê nome ao filme e tenha papel importante na narrativa, em muitos momentos ele não é mais do que um espectador passivo dos acontecimentos dramáticos – como Burger. Se durante a interpretação de “These Days” Balibar era a única figura iluminada, a performance da música de Peggy Lee concede ao guitarrista o direito à luz. O protagonismo absoluto de Balibar, que outrora elidia os outros músicos pelo desfoque e a escuridão, cede espaço a um equilíbrio de composição. Balibar converte-se em Vienna e Burger em Johnny Guitar: “play the guitar, play it again, my Johnny…”4.
Ne Change Rien é a economia do eco que tudo contamina. “Mais do que em qualquer outro filme meu, é pelo som, pelo silêncio e pela música que se constroem as relações, a geografia e o tempo”, disse Costa em entrevista a Francisco Ferreira5. Não só o desenho sonoro costura sequências, locais, dias, ensaios performances e eventos, mas o faz dentro de um regime de ressonância: músicas ressoam em imagens que, por sua vez, ecoam em canções; ficções reverberam em registros documentais que repercutem histórias de amor; o cinema assombra as músicas que, no caso, constituem alguns de seus próprios fantasmas. Que tudo se dê em um filme que é também sobre o contágio entre luz e sombra, um ecoando sobre outro como ondas sonoras que se interpenetram, não é um detalhe qualquer. Mas deixemos isso para os iconólogos que talvez ainda insistam que não é concebível a luz ouvir a escuridão e vice-versa.
- “Não mude nada, para que tudo seja diferente”. ↩︎
- “Baby, você está me torturando”. ↩︎
- “Quelques pistes paradoxales pour passer entre musique et cinéma”. In: Voir et pouvoir, 2004. ↩︎
- “Toque a guitarra, toque-a novamente, meu Johnny…“. ↩︎
- COSTA, P. Black Album. [21 de novembro de 2009]. Expresso: Portugal ↩︎